* Por Rodrigo Moura
Para se entender a China moderna, antes de tudo, é essencial entender o conceito de família. O que poderia parecer uma definição simples e comum, através de lentes chinesas ganha matizes específicas nessa sociedade milenar. A família é a espinha dorsal desta civilização, uma organização primária e aglutinante que conecta o indivíduo ao Estado.
Uma análise etimológica da palavra família mostra que o ideograma para esse termo é composto pela união de dois componentes, (宀) o telhado, e (豕) porco ou suíno. Em outras palavras, um lugar onde os animais eram abrigados. Afinal, onde há animais domesticados, certamente havia humanos e, portanto, famílias. O ideograma 家 destaca sua importância ao se apresentar como componente de tantas outras palavras, tais como: nação, estado, cláusula, doméstico, propriedade, classe social, entre outros.
Certamente o conceito de família e a sociedade chinesa continuam passando por transformações, sendo que as mais significativas ocorreram durante os três primeiros quartos do século XX. De modo especial a partir de 1949, data da fundação da República Popular da China, um período muito importante na historiografia chinesa recente. Nessa época, surgiram algumas mudanças importantes no desafio do tradicional, em termos de gênero e hierarquias geracionais, mas também na manutenção de características do tradicional, como a configuração patriarcal das famílias chinesas.
Desde então, a sociedade chinesa experimentou mudanças exponenciais em vários níveis e áreas, como leis, política estatal, tecnologia, ciência e mídia. As mudanças foram profundas e deixaram marcas que ainda estão sendo avaliadas. A mais importante foi no campo da família, por causa da questão do patriarcado. A emancipação feminina, a luta pela igualdade de gênero, o crescente individualismo e as novas configurações familiares, entre outros fatores modernos, teriam contribuído para o fim da configuração familiar tradicional. Segundo defendem alguns, isso poderia até ter acabado com o patriarcado na China.
Mas esses todos esses fatores devem ser observados com moderação, pois cada um opera de maneira diferente e em contextos diferentes. Tudo indica que esses fatores modernos não serviram para acabar com o patriarcado, mas ao contrário, serviram de alguma forma para alterar ou mesmo reforçar aspectos da configuração patriarcal. O sistema de parentesco e gênero dura milênios na China e poderia estar passando por uma transformação. Para entender o que está acontecendo, é preciso orientar-se inicialmente em dois eixos: geração e gênero.
Como Yunxiang Yan denunciou em uma exaustiva análise sobre as famílias numa aldeia em Heilongjiang entre as décadas de 1970 a 1990, a sociedade chinesa passou por um processo em que as gerações mais velhas perderam poder e as relações conjugais horizontais começaram a ganhar centralidade. Antigamente os mais velhos definiam tudo, mas isso mudou. Essa autoridade suprema foi neutralizada pelo núcleo marital: esposo e esposa. Isso ocorreu em consequência das grandes migrações que deixaram o campo rumo às cidades e assim saiam da vigilância diária dos líderes familiares. Segundo Yan cessa foi “o triunfo do matrimonial sobre o patriarcal”.
No entanto, mesmo longe de casa, esse processo de individualização ainda foi construído sob as conexões familiares, leis e expectativas sociais anteriores. Assim, o sistema tradicional se impõe, se mantém e consegue delimitar o suposto individualismo nas fronteiras do que se espera do indivíduo. Cabe destacar que esse indivíduo está imerso nessa cultura extremamente patriarcal. As gerações que migraram sabem que na cidade pode haver uma ambiente mais relaxado, mais moderno, mas no campo as regras ainda são as antigas. Então essas gerações fazem a ponte entre a China antiga e a moderna.
A sociedade chinesa é multifacetada e não é possível simplificá-la. Existem relações conjugais e intergeracionais de formas diferentes, como coexistência pré-marital, noivas grávidas e divórcios. Todas parecem ser sinais de queda do patriarcado, podendo exemplificar os sinais da modernidade, mas nesses mesmos casos há procedimentos que mostram que aspectos do patriarcado ainda está muito presente.
O que existe hoje na China é um paradoxo entre a piedade filial, que está aliada à substituição da nora como responsável pelo cuidado dos idosos. Há uma contradição entre a busca, no meio urbano, de encontros com possíveis parceiros e a poderosa influência dos mais velhos na definição de quem será escolhido para um possível casamento com seus filhos. Isso pode ser percebido de modo especial nas famosas feiras de casamento. Assim, essa incongruência permanece na sociedade chinesa, onde a família é guiada por sistemas tradicionais e modernos. O patriarcado se combina com outras formas de abertura da China, trazidas pela modernização, tornando a sociedade chinesa mais plural e multidimensional. Em resumo, pode-se dizer que o patriarcado não acabou, ele se transformou, se amalgamou as novas formas e ainda subsiste.
* Rodrigo Moura é Diretor de Relações Internacionais do Ibrachina e aluno da Universidade de Zhejiang, na China.