Por Marcus Vinícius De Freitas*

Este é o primeiro artigo de uma série de três sobre um importante tema:  a questão da democracia na China. O assunto será abordado levando em consideração as diferentes percepções ocidentais e chinesas sobre o assunto com o intuito de esclarecer que, embora utilizando a mesma palavra, as perspectivas são diferentes. E que a China enfatiza a questão da paz e harmonia como forma de evolução do sistema político e da convivência social, aspectos que parecem distantes dos processos democráticos atuais.

Durante muitas conversas que mantive na China, a questão da democracia sempre surgia no contexto da política doméstica e internacional. Repetidamente, os chineses afirmavam que a China era um país democrático. Obviamente que a impressão que eu tinha, como ocidental,  era de que a visão por eles apresentada não correspondia ao entendimento que temos, no Ocidente, sobre o assunto. Para nós, a definição de Abraham Lincoln, no famoso discurso de Gettysburg, na Pensilvânia, em que afirma que a democracia é o governo do povo, para o povo e pelo povo, talvez seja o conceito definidor para nossa compreensão. No entanto, em razão da influência de grupos poderosos na determinação de regras, leis e regulamentações, reconheço que temos observado uma deterioração substancial no conceito proposto por Lincoln. O elemento povo está cada vez mais distante do poder e a pressão de determinados grupos, com poder econômico, faz com que haja diferentes graus de “povo”.

A democracia, como entendemos no Ocidente, pode ser a direta ou a representativa. No caso da democracia direta, a população é convocada, com maior frequência e proximidade a opinar diretamente sobre os assuntos que afetam a região ou o país. É o caso, por exemplo, dos Cantões na Suíça. Já na democracia representativa, o legislativo, unicameral ou bicameral, devidamente eleito, representa os interesses da população baseado num mandato outorgado pelas urnas. O mecanismo do voto é importante para a eleição desses representantes porque constitui a base da representação e o elemento de conexão entre eleitor e eleito.

O sistema de voto, no Ocidente, pode adotar características diferentes: proporcional, misto ou distrital. Cada um destes modelos leva em consideração o quão direto se deseja o contato entre eleitor e eleito. Além disso, os países utilizam diferentes formas de governo, como a Monarquia e a República, e sistemas, como o Parlamentarismo e o Presidencialismo. O voto, no entanto, constitui o elemento essencial para a seleção, direta ou indireta, daqueles que são responsáveis pela Chefia de Governo. Em alguns casos, particularmente naqueles são repúblicas presidencialistas, pode ocorrer de a eleição definidora da Chefia do Governo ocorrer em dois turnos, o que leva necessariamente a uma bipolarização e fratura social muitas vezes.

É fato que, no Ocidente, associamos a democracia, inicialmente, a eleições livres. No entanto, a sacralidade do voto tem sido colocada à prova em muitos lugares em razão dos reconhecidos abusos da democracia. Casos ocorrem em que governantes se perpetuam no poder após a manipulação do instrumentos de votação ou pelo sufocamento da oposição existente. Esta situação tem-se revelado mais recorrente do que o desejável para o fortalecimento do ideal democrático.  É por esse motivo que adicionamos a questão da alternância no poder como um elemento relevante na determinação do conceito de democracia. Afinal, a troca de grupos no poder é importante à própria saúde democrática.

Além da questão do abuso da democracia, outro fator desafiador democracia ocidental tem sido aquilo que chamamos de “remorso do comprador”. Este remorso acontece quando o comprador vai à loja, seleciona um item, adquire-o, e, no dia seguinte, dá-se conta de que fez um mal negócio. O mesmo sentimento tem ocorrido em muitas das democracias, quando o eleitor sente que aquele que foi por ele selecionado, de fato, ficará muito aquém de suas expectativas. Além disso, em países onde existe um segundo turno eleitoral, a impressão que se tem é de que, no primeiro turno, o eleitor seleciona o candidato, porém no segundo é obrigado a eliminar, nem sempre correspondendo aos seus verdadeiros anseios, mas àquilo que lhe é apresentado como selecionado pela ditadura da maioria. A democracia, assim, em termos ocidentais, pode ser definida por três elementos: um sistema político, o direito popular de governar e uma liderança selecionada pelo povo.

Ao analisarmos mais aprofundamente a questão, mesmo no Ocidente, a democracia apresenta diversas complexidades e formas, e por essa razão é importante compreender que os chineses também podem entendê-la de modo particular. Em 2010, Xi Jinping, que mais tarde se tornaria Secretário Geral do Partido Comunista da China e Presidente do país, afirmou que “o poder é dado pelo povo e o poder é usado para o povo”, algo muito próximo da perspectiva de Abraham Lincoln, mas aplicado de uma maneira diferente.

Na China, durante o período pós-império, o conceito ocidental de democracia foi introduzido por Sun Yatsen. A realidade, no entanto, foi que o divisionismo imposto pela democracia e constante oposição entre grupos eracontrário aos princípios fundamentais da sociedade chinesa – paz e harmonia. A democracia ocidental revelou-se – como de fato tem sido – mais divisiva e menos interessante para uma sociedade extremamente complexa, com uma diversidade e tamanho populacional únicos.

Até mesmo o termo democracia, em chinês, 民主 (Mínzhǔ), é fruto de uma evolução histórica diferente da perspectiva ocidental. Ademais, não podemos esquecer a importante influência do Confucionismo na sociedade chinesa, em que o imperador estava acima da estrutura social, como líder do povo. Para o Confucionismo, a estrutura hierárquica da sociedade é importante para a manutenção da estrutura social. E o governo é um amigo, patriarca, e não um inimigo.

É baseado nestas perspectivas que a compreensão da democracia na China passa por um realinhamento da nossa perspectiva. Nos próximos artigos serão abordados temas relativos à organização política chinesa e a democracia partidária do Partido Comunista da China. Esta introdução é fundamental para entender a maneira diferenciada de entender a democracia chinesa.

* Professor Visitante, China Foreign Affairs University Senior Fellow, Policy Center for the New South

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