* Por Osvaldo Novais de Oliveira Jr., professor do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP
Embora o domínio do conhecimento sempre tenha sido preponderante para o poder de uma nação, essa importância tem sido amplificada no século 21, conforme nossa vida se torna cada vez mais dependente de conhecimento e tecnologia. De fato, houve uma mudança drástica na taxa de desenvolvimento tecnológico ao longo do século 20, a partir de descobertas sobre como a matéria é constituída. Com as teorias quânticas e da relatividade nas primeiras décadas do século 20, a humanidade aprendeu a manipular a matéria e criar novos materiais.
A biologia foi revolucionada e informações detalhadas sobre seres vivos levaram a novas terapias e abordagens para prevenção de doenças; foi possível desenvolver instrumentos sofisticados, como o computador. Para a humanidade, o resultado principal foi um ganho de tempo de vida e condições de conforto – para alimentação e moradia, por exemplo – impensáveis até o século 19. É incrível constatar que um cidadão comum hoje tem acesso a bens de consumo e conforto muito superiores aos de reis e rainhas de séculos passados.
Outra consequência importante é que a geração de conhecimento também cresceu enormemente. Se considerarmos as universidades e centros de pesquisa como arquétipos de instituições que produzem conhecimento, houve um aumento vertiginoso no número e tamanho dessas instituições. A pesquisa científica passou a ser ocupação de milhões de pessoas, gerando conhecimento e tecnologia em esforços que muitas vezes requerem milhares de cientistas, supercomputadores e “laboratórios” do tamanho de estádios de futebol. Empresas também se engajaram em pesquisa para desenvolver produtos e serviços, sem os quais não conseguem competir em um mercado cada vez mais exigente e sofisticado. Criou-se uma verdadeira “indústria” de geração de conhecimento. Um indicador relevante dessa transição está no crescimento no número de publicações científicas disponíveis e de patentes registradas.
Esses breves comentários sobre a evolução da pesquisa científica se aplicam ao mundo de modo geral, mas é na China que se identifica o exemplo recente mais marcante da importância do conhecimento. Até o início da década de 1990, a produção científica da China era, em termos numéricos, semelhante à do Brasil, e o país dispunha de pouca tecnologia produzida localmente. Pode parecer inacreditável, mas boa parte dos automóveis que então circulavam na China era importada do Brasil. Essa situação começou a se alterar com a decisão do governo chinês, à época, de investir em ciência parte dos recursos que auferiam da exportação de produtos manufaturados. Muitas foram as iniciativas, em diferentes níveis de governo, para prover uma infraestrutura de pesquisa às universidades e formar acadêmicos. A formação de um grande número de cientistas em apenas algumas décadas foi possível porque a China já contava com uma educação pré-universitária de qualidade, mesmo antes dessa decisão mencionada.
Além dos incentivos para contar com uma base considerável de cientistas, o governo chinês adotou uma estratégia agressiva para premiar a qualidade e desempenho. Do ponto de vista dos cientistas, essa estratégia se refletiu em um aumento de rendimentos sem precedentes. Nos anos de 1990 os salários de professores universitários na China eram muito menores do que no Brasil. Hoje, cientistas bem-sucedidos lá têm salários (e benefícios) muito maiores. Os resultados das iniciativas chinesas estão amplamente demonstrados. A China é atualmente o país com maior número de publicações científicas, ultrapassando os Estados Unidos.
Na vanguarda
Em algumas áreas estratégicas, como nanotecnologia, a China já produz mais do que o dobro de publicações do que os Estados Unidos. Na aplicação de materiais, publicações oriundas da China correspondem à metade de toda produção em alguns periódicos, três vezes maior do que a dos Estados Unidos. A capacidade de gerar conhecimento consolidado em publicações científicas foi complementada com a geração de inovações tecnológicas. Estabeleceu-se um sistema de tecnologia e inovação, com incentivo ao empreendimento individual, capaz de transformar resultados de pesquisa científica básica em produtos e serviços. Um círculo virtuoso surgiu com o enriquecimento da China, que permitia investimentos crescentes no sistema universitário e na pesquisa. O domínio da China hoje ocorre em poucas tecnologias de ponta; entretanto, no nível de pesquisa já se nota sua preponderância em grande número de áreas.
A transformação da geração de conhecimento – sinalizada por publicações científicas – em tecnologia e riqueza foi constatada em várias nações nas últimas décadas. Praticamente todos(as) os (as) líderes das nações desenvolvidas (ou mesmo outras) afirmam que conhecimento, ciência e tecnologia, são essenciais para o desenvolvimento e bem-estar. Entretanto, são poucos os países que transformam essa opinião consensual em políticas públicas efetivas. Alguns o fazem e garantem grande qualidade de vida para sua população, como os países escandinavos e Israel. Mas esses são países pequenos (em tamanho e população) e não têm como assumir um papel dominante no cenário mundial.
O Japão fez um esforço semelhante ao da China após a Segunda Guerra Mundial e logrou ter a proeminência atual. Propiciou qualidade de vida à sua população e dominou algumas áreas tecnológicas, como a automobilística e eletrônica. Sua produção de conhecimento hoje deve mantê-lo entre os países desenvolvidos, mas não é suficiente para estabelecer um domínio tecnológico. Considerações parecidas podem ser feitas sobre a Coreia do Sul. A União Europeia tem tamanho e produção científica volumosa e de qualidade. Mas sua baixa taxa de crescimento em produção científica – e seu investimento relativamente baixo em ciência – não permitirá competir com a China. O mesmo se pode dizer dos Estados Unidos.
Em suma, dos países grandes e populosos, apenas a China focaliza suas políticas públicas na produção de conhecimento. A julgar por sua crescente importância nessa produção de conhecimento, é de se esperar que em poucos anos tenha um domínio – tecnológico e econômico – que pode ser avassalador. Sei que parece ousado fazer tal afirmação. Ademais, a premissa de que a produção científica é o principal indicador para desenvolvimento tecnológico é certamente simplista. Mas é a previsão mais confiável se acreditarmos na conexão da produção científica com geração de conhecimento, e o valor desse conhecimento.
Previsões
Sobre previsões acerca da China, vale lembrar o que se passou nas últimas décadas. No início dos anos 2000, após minha primeira visita à China, eu ainda não tinha certeza se os investimentos que estavam sendo feitos teriam o retorno que pretendiam. Eu não sabia se o desenvolvimento que se via na ciência chinesa seria sustentável no longo prazo, e se lograriam atingir a qualidade na produção acadêmica das potências mundiais. Ao mencionar essas minhas dúvidas a um amigo, professor Ricardo Aroca, cientista chileno radicado no Canadá e que tinha colaborações científicas com a China, ele me respondeu assertivamente que a revolução já tinha acontecido. Que nós ainda não víamos os resultados, pois não apareceriam imediatamente. Mas que com todo o investimento e o número de cientistas já formados ou em formação, uma produção científica numerosa e de qualidade seria gerada.
A metáfora que me ocorreu tempos depois dessa conversa foi a de um tsunami. Podemos não perceber agora na praia que ele está vindo; mas se já tiver se formado, chegará com certeza. Era nessa metáfora que eu pensava quando argumentavam comigo que a indústria de manufatura da China nunca teria a mesma qualidade dos países desenvolvidos. Eu sabia que, com tanta ciência e tecnologia, a China lograria ter produção industrial de alto nível, como sabemos existir hoje.
O próximo passo é o domínio nas tecnologias de ponta, como nas necessárias para viagens espaciais, computação quântica e Inteligência Artificial. Já há indícios de que a China em breve dominará boa parte dessas tecnologias. Não é fácil prever as consequências geopolíticas do domínio da China, mas considero essencial que o Brasil estabeleça estratégias para interagir com esse importante parceiro. Tal interação precisa ir além das parcerias comerciais. Precisamos privilegiar políticas para geração de conhecimento. Apesar da assimetria nos tamanhos das comunidades científicas chinesas e brasileiras, tenho certeza de que há espaço para colaborações sinérgicas. Nossas colaborações são hoje tímidas considerando-se a importância da China no cenário mundial da ciência.
* Publicado originalmente no Jornal da USP.